terça-feira, 25 de junho de 2013

o amor (do outro) acaba

O suco de manga ficou inteiro quando o amor acabou. Não descia, sabe? Ficou lá, na mesa. Quando o amor acabou. Tinha um amarelo tão vivo. Um amarelo-manhã-de-sábado. E ali, na presença daquele amarelo metálico, o amor acabou.

Ela pediu uma água e disse coisas. Um monte. Disse que a gente não se fazia mais bem. Que seu peito doía. Que era ficar sem mim que ela queria. Eu prestei atenção em algumas, porque seus lábios me confundiam. Eles se movimentavam de uma forma mais rápida que o normal. Com pressa. Ora saía som. Ora não. E a cada palavra somada à conversa, o amor ia acabando. 

Ela tomava um gole d'água pra molhar a garganta. E descansava um pouco. Nesses silêncios eu ficava olhando o suco. Amarelo ouro. Tão precioso. E intacto. Não dei nenhum gole. Só mexi um pouco, com o canudo. Senti como era espesso. Fibroso. Nutritivo. 

De vez em quando eu olhava nos olhos dela. Eles que falavam quando a boca estava muda. Falavam vazio. Escuro. Abismo. Eu tentava mergulhar pra trazê-los de volta. Mas só os afundava mais. E me afogava mais. E o suco de manga ali. Vivo. Completo. E o amor ia acabando, enquanto ela falava. E ela ia tomando a água enquanto falava. E eu olhava seus lábios se movendo mais um pouco. E eu me confundia mais um pouco. 

Não conseguia mais me prender à mesa. À cadeira. Não conseguia me prender a mim. Era como se eu estivesse voando ao contrário. Me enterrando vivo, sabe? Cada palavra dela era uma pá de terra. Eu fui sentindo a pressão no peito. Esmagando as costelas. E o amor ia acabando. E ela ia ficando mais leve. E tomava mais um gole d'água. Tirando um peso das costas. Um peso da boca. Gritando o peso das palavras. Seu alívio me pendurava âncoras na alma. 

E o suco de manga ali. Intocado. Hermético. E ela falando. E eu ouvindo. E ela mexendo os lábios. E eu mexendo o suco. Com o canudo. Com cuidado pra não derramar. Tentando entender o porquê daquilo tudo. Do nada. Porque sabe, ela me amava semana passada. Mas a semana passada passou. O amor passou. A água dela acabou. A conversa acabou. O amor acabou. Pagamos a conta.

A atendente perguntou se eu ia tomar o suco. Disse que não. Que podia levar. Daquele jeito. Amarelo, precioso, espesso, intacto, fibroso, nutritivo, vivo, completo, intocado e hermético. Igualzinho ao que eu carregava dentro do peito. Ela levou. O suco. O amor, não. Esse ficou. 

4 comentários:

  1. Doeu.

    ...Ao mesmo tempo, me lembrou aquele trecho:

    "... (...) Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco pra ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo."

    [Caio Fernando Abreu, em O mar mais longe que eu vejo]

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que lindo! E dolorido também. Esse texto foi um exercício feito em cima da crônica "O Amor acaba", do Paulo Mendes Campos. Leia que vale a pena.

      Excluir
  2. Eu também me lembro de um suco, mas devia ser de laranja. De lábios se mexendo. E de lábios mudos. De olhos focados na mesa. Do amor acabando.

    Dói. E não tem o que fazer. Muito legal o texto, com certeza muitos se identificaram!

    ResponderExcluir